21 de jan. de 2010

A vida das mulheres não é um direito humano

Ou é o que pensa o senador Cristovam Buarque. Ao falar sobre a inclusão, no polêmico Plano Nacional de Direitos Humanos, do apoio ao projeto de lei que descriminaliza o aborto, o parlamentar declarou que "o assunto ainda não está maduro o suficiente para ser considerado um direito humano". O tapa na cara da lógica continuou com a declaração de que ''é um direito civil evitar que mulheres continuem morrendo devido à criminalização do aborto, que as impede de recorrer ao sistema médico; mas, para isso, basta uma lei que defina critérios que permitam o aborto em casos como o de estupro ou de risco de vida para a mãe". 

Ou seja: não apenas o senador acredita que a vida das mulheres, mortas aos milhares todos os anos por recorrerem a abortos clandestinos, não pode ser considerada um direito humano, como ele desconhece o Código Penal do país no qual desenvolve sua atuação política. Talvez seja um choque para o senador, mas o Código Penal, elaborado em 1940, já diz que o aborto não é crime em caso de estupro ou de risco de vida para a mulher. Não que seja fácil para as mulheres vítimas de violência sexual exercerem esse direito. São poucos os hospitais no país que oferecem o serviço, forçando muitas mulheres a fazer a opção entre conviver com um lembrete constante da terrível violência á qual foram submetidas, ou a recorrer a abortos clandestinos, em condições precárias de higiene e segurança, colocando sua integridade física e sua vida em risco.

Talvez também seja um choque para o senador, mas das milhares de mulheres que morrem todos os anos nas mãos de verdadeiros ''açougueiros'' aos quais recorrem em uma tentativa desesperada de interromper uma gravidez para a qual não estão preparadas, a imensa maioria não é vítima de estupro nem encontra-se em risco de vida (ou não encontrava-se, até colocarem-se nas mãos dos responsáveis pelas clínicas clandestinas em que sua vida pouco ou nada vale) Estas, apesar das dificuldades, não correm o risco de ser processadas e ameaçadas com o rigor da lei caso tomem medidas desesperadas para evitar uma maternidade que não têm condições de suportar. As mulheres que morrem em abortos clandestinos são mulheres como quaisquer outras, com a diferença de que a maioria é pobre ou mesmo miserável, sem condições de pagar por um aborto seguro, como os oferecidos a quem tem condições financeiras para tal.  São mulheres cujo método contraceptivo falhou, mulheres que caíram no 01% de índice de falha da laqueadura, mulheres vítimas da indústria farmacêutica que coloca pílulas de farinha e injeções falhas de anticoncepcionais no mercado, vítimas do machismo que vincula a virilidade de um homem ao número de filhos que produz, vítimas dos estupros que todos os dias sofrem tantas mulheres nas mãos de seus maridos ou companheiros, vítimas de um sistema que desencoraja mulheres a relatarem crimes sexuais, pois lhes incute o medo de que não o agressor, mas elas mesmas serão julgadas. Não são as irresponsáveis tampouco as ''vagabundas'' do imaginário popular, mulheres que recorrem ao aborto para ''fugir da responsabilidade'' que trouxeram sobre si mesmas ao ''deixar de se prevenir'' contra a gravidez. São mulheres que, confrontadas com uma gravidez que não estava em seus planos, têm apenas duas opções: arcar com as alterações radicais trazidas pela maternidade em sua vida, muitas vezes abdicando de planos e sonhos para o futuro, ou arriscar a vida e a saúde interrompendo a gravidez com métodos inseguros.

A versão original do Plano Nacional de Direitos Humanos previa o apoio ao projeto de lei que descriminaliza o aborto, e fazia referência à autonomia das mulheres. O texto atual, após a modificação gerada pela pressão do setor religioso, retirou a referência à autonomia feminina, este verdadeiro palavrão para os setores conservadores da sociedade. A alteração gerou revolta entre os movimentos de mulheres, que consideram o direito de decidir se e quando ser mãe um aspecto essencial do direito humano à liberdade. Não existe consenso no Brasil sobre se o direito de interromper uma gravidez é um direito humano. Tal consenso não existe em lugar algum, nem mesmo nos lugares em que o aborto é permitido, como comprova a existência de organizações anti-aborto em países como os Estados Unidos, onde recentemente um médico que realizava abortos em mulheres cuja saúde ou vida era ameaçada pela gravidez foi assassinado por um militante do movimento que se auto-denomina ''pró-vida''.

O consenso sobre o status do direito ao aborto enquanto direito humano não é apenas inexistente e impossível de ser alcançado...ele é de importância absolutamente nula na discussão sobre a descriminalização da interrupção da gravidez. Existe um motivo muito mais premente para modificar-se a atual legislação relativa ao aborto. É o fato de que tal modificação impediria milhares de mortes evitáveis todos os anos. Isto porque criminalizar o aborto não é impedi-lo; é fazer com que ele ocorra na clandestinidade, em condições que levam á morte, á infertilidade ou a graves sequelas na saúde das mulheres que a ele se submetem. Dar condições para que as mulheres que desejam interromper uma gravidez o façam em condições que respeitem a sua integridade física e mental é medida urgente para evitar milhares de mortes e sequelas físicas e psicológicas todos os anos. Legalizar o aborto é medida que se impõe para a preservação da vida e da saúde das mulheres: esses sim direitos humanos incontestáveis.